sábado, 4 de abril de 2009
Existe em nós...
I
Existe em nós
não o novo
mas o renascido.
Pesamos por isto as verdades
sobre a balança sem pêndulo.
e contra os que nos britam
com seu peso de ave
lançamos roucas interrogações
sobre a morte,
sim, sobre a morte,
com anzóis a dragar-nos da memória.
Existe em nós
não o novo
mas o renascido.
Comportamos por isto o lastro,
o lastro de termos sido
e virmos a ser.
Sentimos os pequenos gritos
como ficam imensos
quando a noite junca as fibras
e quando no silêncio brotam devagar
os pais de outras nações.
Existe em nós
não o novo
mas o renascido.
E apesar da haste gritar
contra o caule
e ferir o grito
com tempos sem fim,
a essência persiste como essência.
Então, o amor nos justifica,
e, carga imersa, revela-se concepção.
Mas de um plano qualquer retornamos
com a solidão de todas as solidões.
Lindolfo BellIn ‘Ciclos’
Quero viver esta terra...
XII
Quero viver esta terra como a árvore.
Frutificar a árvore como um tempo.
Purificar-me no tempo como o girassol
que do tempo tem a haste e o farol.
Quero a essência da essência,
a que se fixa ao forte
para que o forte sobreviva.
Quero brincar neste beco como a roda
que se caminha
e se repete.
E repetindo é roda
e barca ao mesmo tempo
e coração que aguarda
e sofre morrer docemente.
Quero serenar a ternura
e distribuir o amor demasiado
em destino para toda multidão.
Lindolfo Bell
In ‘Ciclos’
A Magnólia
Na noite a magnólia
no ramo a magnólia,
no jardim no ramo
a magnólia, a branca,
a chegada, a aconchegada
na noite, a magnólia
na rama do ramo, calma,
magnólia, doce óleo
na noite sem data, a magnólia
arde na noite sem data, a magnólia
brilha no pouso na noite,
na florescência de estar ali,
sem alarme, amarrada ao ramo,
a magnólia plena como um olho
aberto ou fechado ou derramado,
a magnólia na véspera, vespertina,
a magnólia no tempo.
Lindolf Bell
In ‘Incorporações’
Legado
Deixarei por herança
não o poema
mas o corpo no poema
aberto aos quatro ventos
Pois todo poema
é verde e maduro,
em areia movediça
de angústia, solidão
Onde me debato
ainda que finja o contrário
em busca da verdade
e seu chão
Deixarei por herança
não o poema
Mas o corpo repartido
na viagem inconclusa
Pois todo o poema maduro
é um verde poema
E, mesmo acabado,
se estriba na inconclusão
Claro, sem esquecer,
o estratagema da paixão
Lindolf Bell
In ‘Código das Águas’
Primeira Raiz
Ancestral não direi:
antes cesto de tudo,
antes tempo em que mudo:
pêlo,pele,sobretudo.
Ancestral direi:
se memória não fosse mais
( e é tudo)
que o risco na cerâmica quebrada,
o nome dentro da pedra achada,
e o amor, esta breve palavra,
em milagre de nada.
Ancestral , sim,
porque o que passou, passa, passará,
não passa de matiz, matriz, da manhã.
E dúvida ancestral
não é mais que fogo, afago, cinza.
E tudo que penso
pouco mais dura que a escrita,
a da raiz, a da marca do pé na terra,
que mino, rumino,
e que me habita.
Lindolf Bell
In ‘Código das Águas’
A palavra Destino
Deixai vir a mim
a palavra destino.
Manhã de surpresas, lascívia e gema.
Acasos felizes, deslizes.
Ovo dentro da ave dentro do ovo.
Palavra folha flor.
Deixai vir a mim a palavra
e seus versos, reversos:
metamorfose,
metaformosa.
Deixar vir a mim
a palavra pão-de-consolo.
Livre de ataduras, esparadrapos,
choques elétricos
e sutis guardanapos da morte
após gorjeios em seco engolidos socos.
Deixar vir a mim
a palavra intumescida pelo desejo.
A palavra em alvoroço sutil, ardil
e ave na folhagem estremecida entre a palavra.
A palavra entre o som
mas entre o silêncio do som.
Deixai vir a mim
a palavra entre homem e homem.
E a palavra entre homem
e seu coração posto à prova
na liberdade da palavra coração.
Deixai vir a mim
a palavra destino.
Lindolf Bell
In ‘Código das Águas’
Enfermidade, Efemeridade
A palavra não é nebulosa estrela.
Sequer desarticulada ilha de infinidades.
Estopim aceso, sim, águas de inquietação,
a palavra não é jogo de dados.
Jogo de dúvidas, sim, dádivas,
dardos envenenados de selvagem silêncio.
Por um fio a palavra é prata.
Por um fio a palavra é pata de cavalo.
Por um fio, ato de injustiça.
Não há nenhuma pressa na palavra
en seu destino de lesma.
A palavra, flor justa se for bem usada.
A palavra de fogo-fátuo feita.
A palavra que não faz acordos em vão.
A palavra
é não dar com a língua nos dentes.
Ainda que arranquem a língua.
E cortem a palavra em pedaços
e a exponham em postes públicos da degradação.
Não é sempre a palavra
só tiro de festim.
Pode ser fim de linha.
Quimera, exato fingimento de vôo.
Nada, tudo, nunca e ninguém.
Assentimento, delicada praxis de afetos,
que somente se adivinha.
A palavra
que em breve
será a palavra dentro em breve.
A palavra
que se reveste de linho real
na linha real da vida:
enfermidade,
efemeridade.
Lindolf Bell
In O Código das águas
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